.

Devo ser machista pois acredito em Deus, não em deusa.

José Márcio Castro Alves

Batata, o Dom Quixote de Altinópolis.

por José Márcio
Castro Alves


Luiz Carlos Castro Palma (16/09/1940 – 28/12/2009)
por José Márcio Castro Alves

--- O Batata morreu, disse a minha irmã Ângela por volta das 19 horas do dia 28 de Dezembro de 2009.
Liguei pra alguns pedi que avisassem aos chegados. Fui pro velório em Altinópolis, chegando por volta das nove da noite. Pouquíssimas pessoas presentes. O Luiz Carlos de Castro Palma estava com um terninho preto e camisa de gola bege, com uma gravata listrada de marrom escuro com preto, uma combinação esdrúxula e de um mau gosto indescritível, arquitetada pelos criadores da vestimenta mortuária, a funerária Bom Jesus, de Batatais.
Entufado de algodão nas narinas e a boca colada com super bonder, a expressão facial era a mesma do comediante Cantinflas, com as bochechas estufadas na véspera de pronunciar a sílaba pu, do puta merda.
Nenhuma lágrima foi testemunhada. A expressão de todos era de alívio, visto que qualquer aleijado por erro médico após 10 meses de penitência inigualável, sem pulmão e esperança, ao morrer, desperta a sensação de paz aos que ficam e do infeliz que se foi.
O charlatão que o operou tem ficha suja na sinistra capivara de erros médicos do HC de Ribeirão Preto. Na gaveta desses poltrões impunes, o Batata é apenas mais caso resultante da própria teimosia, incompetência, ignorância, falta de assunto, idiotice e tragédia financeira. O episódio será esquecido em poucos dias, ficando apenas o que interessa: a lembrança daquele homenzinho extremamente carismático e educado enquanto sóbrio, mas deveras alucinado e impafioso quando bêbado, o que ocorria após umas sete ou oito horas de cerveja.
Nos 50 anos de vida boêmia, o Batata quando bebia, nunca ficaria acordado e bêbado menos que 30 horas consecutivas, sempre varando o dia seguinte a dormindo só na outra noite, ao lado de maços e maços de cigarros e umas 5 ou 6 cervejas no outro dia, no máximo. Quando ia dormir, chegava a varar mais de 14 ou 15 horas num desmaio absoluto. Quando acordava, tomava um banho demorado e depois ia comer após 40 ou 50 horas de jejum absoluto. Nos dias posteriores, escondia de si mesmo para esquecer das loucuras que cometera, indescritíveis em níveis de insanidade alcoólica.


No Pingüim de Ribeirão sentava sozinho com a câmera fotográfica, uma teleobjetiva enorme e um passaporte, colocados em cima da mesa com o propósito de chamar a atenção. Proclamava-se um jornalista dos Diários Associados do Chateaubriant. À mesa, pós ressaca, chamava o padrasto de papai e puxava assuntos amáveis:
--- Papai, me passe a chicória... Bêbado o chamava de Néia, com voz alta e provocativa, sempre escudado no sobrenome Palma, uma trincheira equivocada para erros desnecessários. As vezes, durante algum surto, pegava o telefone e discava para Roma, Namíbia, Brasília, Miami, etc. --- É Palma, gritava quando alguém atendia, ciente de que o outro lado estava a tremer de medo como se estivesse falando com Hitler ou Stalin. Esse era o Batata bêbado e varado, sempre sentado sozinho, pois era insuportável quando alcoolizado.
Assim foi a vida toda. Um homem educado, receptivo e tolerante, agradável e de uma generosa companhia, mas sem álcool. Nos últimos 20 anos, a média dos fogos era de não menos que 6 ou 7 por mês. Sempre a mesma coisa. Começava a beber a tarde num boteco ou na casa dele quando algum amigo levava cerveja e o convidava. Varava a noite e o dia seguinte inteirinho, sempre até as 10 ou 11 da noite. Sempre nas madrugadas, na boquinha do outro dia, pegava a máquina fotográfica e ia pra janela ou a varanda fotografar o romper do dia com seus personagens habituais. Os mesmos personagens sempre sentavam no mesmo banco do jardim defronte a casa, nos mesmos horários. O Batata tirou fotos deles durante 20 anos, sempre no mesmo plano, o mesmo banco e o mesmo fundo, mas sempre se gabando de ter feito uma foto inédita.



Fotografia era o hobby do Batata. Tirou belas fotos e péssimas fotos nos quase 50 anos de máquina na mão. Ótimo papo até as primeiras cervejas e péssimo papo após as cinco primeiras, pois a partir daí encarnava um fazendeiro que não era, um escritor sem livros, um aventureiro sem aventuras, um jornalista com pouquíssimas reportagens, um patrão sem empregados e um coronel sem exército. Mas era um bom contista. Chegou a ser preso em Ribeirão Preto ao passar por um capitão que nunca fora.
Um oficial passara na rua e o Batata o chamou com um estalar de dedos e o nariz empinado:
--- Faça continência. Eu sou o capitão Palma.
O oficial respondeu:
--- Major Bezerra. Seus documentos.
O resultado foi um camburão estacinando no Pingüim em poucos minutos e o Batata levado à delegacia de polícia na Duque de Caxias onde ficou detido por mais de 24 horas.
Ele fez dessas falcatruas inúmeras vezes. Adorava comandar e viver cercado de subordinados, quando moço e quando bêbado.
Ao longo dos seus 69 anos fez inúmeros amigos, sempre admirado por todos. Sóbrio, tinha educação e fino trato, erudição. Leu muita coisa boa e muita porcaria. Achava Altinópolis a capital do mundo. Sem estar de fogo ele era o Batata, bêbado era o Palma, sobrenome do pai que falecera quando ele tinha alguns meses de idade. Herdara em 1940, com a mãe, a metade da fazenda Barra Grande, no município de Serrana. Após um ano e meio, a mãe, tia Filhinha, venderia a propriedade para o rico fazendeiro Mario de Souza Meirelles. Todos diziam que aquele menino era o homem mais rico de Altinópolis em dinheiro vivo, numa época em que quase não existia dinheiro. Após 18 anos, o capital da grande fazenda transformara-se numa boa casa na rua Rui Barbosa em Ribeirão Preto, que lhe rendia uma média de uns 4 salários mínimos de aluguel, em valores de hoje, o que ele gastava integralmente nas orgias de dois dias começadas no Pingüim e sempre terminadas na zona boêmia, sem um tostão sequer quando regressava. Naquelas 48 horas com dinheiro vivo no bolso, o Batata era o rei da gorjeta e o exemplo vivo dos perdulários e dos pródigos. Restabelecido da ressaca e da bebedeira, viajava na imaginação e nas fantasias dos personagens dos livros que lia. A mãe sempre o apoiava e ninguém ousava em contradizer suas fantasias e devaneios mentais, fato que se repetiu ao longo da vida. Não dava o braço a torcer quando era inquirido nas suas invenções de fatos impossíveis, a exemplo de ter tirado brevê e de ter pilotado um avião. O Batata nunca pilotou uma bicicleta sequer, mas andava com passaporte no bolso. Conheceu parte do mundo nos livros e no cinema, mas dizia-se íntimo de celebridades e de lugares que ele nunca conheceu.
Gentil, cortês e fraterno, sempre dava presentes caros a pessoas estranhas para afirmar-se rico. Jamais disse não sei. Eu era o único que o provocava.
--- Batata, quantas papisas existiu?
--- Duas, respondeu, no ato.
Peguei a enciclopédia Barsa e chequei.
--- Batata, aqui não consta nenhuma papisa.
--- Houve sim, inclusive eu estava até comentando isso com o coiso, etc.
Teimava, inventava nomes. Era irredutível.


Quatrocentos milhões de exemplos desse tipo forjariam sua personalidade ao longo da vida. Todos o conheciam e o respeitavam, não dando importância às alucinações lendárias que toda Altinópolis conhecia, de cabo a rabo. Afirmava-se jornalista o tempo todo e íntimo de muitos jornalistas populares, sem nunca tê-los conhecido pessoalmente. Satisfazia-se com essas intimidades e as proclamava com insistência.
Quando o aprentei à jornalista Rosana Zaidan, em 1990, disse que ela era uma jornalista da EPTV, do grupo do dr. José Bonifácio Coutinho Nogueira, família tradicional de São Paulo.
--- Conheci muito o dr. Bonifácio, afirmou à Rosana.
Acontece que o dr. Bonifácio era um homem importante, usineiro e banqueiro, uma pessoa discretíssima e muito reservada.
--- Conheceu onde? perguntou a Rosana.
--- Ele era o meu pediatra, respondeu o Batata, na lata, na bucha.
--- O dr. Bonifácio é advogado, Luiz, formado da USP nos anos 1940, foi político nos anos 1960 e nunca foi médico, respondeu a Rosana.
--- Pergunte pra mamãe. Ele ia sempre lá em casa em Campinas me consultar, me examinava e receitava, etc, etc.
Não deu o braço a torcer sobre o assunto.
Assim foi o Batata a vida toda. Um Dom Quixote desgarrado no tempo. Saudades das suas tiradas e sacadas inimagináveis, onde era muito gostoso ser o seu Sancho Pança, nas bravatas que nos fazia rir da vida e de nós mesmos, de um tempo delicioso e memorável, das aventuras e das infinitas noitadas nos bares, no sítio do meu pai, em Ribeirão Preto, nas mil festas e noitadas, na casa da vó Salomé que se transformou na casa do Batata, uma pessoa visitada por todos a vida toda, numa casa que não mais existe.
No céu, certamente será íntimo de N.S. Jesus Cristo, do qual foi um dos apóstolos. Foi ele que escreveu O Evangelho segundo São Batata, ainda no prelo.



Próxima Página

Página Inicial

Almeida Junior - Paixão e tragédia.

Existem inúmeras versões sobre o trágico assassinato do pintor José Ferraz de Almeida Júnior (1850 - 1899). Os relatos são na maior parte excertos das informações do livro “Almeida Júnior através dos tempos”, do escritor Jorge Luiz Antonio, além de vários outros documentos e jornais da época.

Desde a infância o garotinho Almeida Junior já demonstraria um talento impressionante para a pintura. Teve no Padre Miguel Correa Pacheco seu primeiro incentivador, quando era sineiro da Matriz de Nossa Senhora da Candelária, em Itu, sua cidade natal. Foi o padre quem obteve, numa coleta pública, o dinheiro suficiente para que o futuro artista, já então com cerca de 19 anos de idade, pudesse embarcar para o Rio de Janeiro, a fim de ali estudar.
E foi durante uma visita à provincia de São Paulo que o Imperador Dom Pedro II, numa exposição, encantou-se com a genialidade do rapaz. Decidiu dar-lhe uma bolsa de estudos na Escola de Belas Artes em Paris. A 23 de março de 1876, um decreto da Mordomia da Casa Imperial abria crédito de 300 francos mensais para que Almeida Júnior fosse estudar em Paris ou Roma. Ao final do ano o artista seguia com destino à França, e um mês depois já estava matriculado na Escola Superior de Belas Artes, em Paris, como aluno do célebre Cabanel.
No dizer de Gastão Pereira da Silva, "era o mais autêntico e genuíno representante do tradicional tipo paulista". Quando retornou da Europa, Almeida Júnior já era um dos melhores pintores da época, rico e famoso.


(Cena de Família de Adolfo Augusto Pinto 1891)

Almeida Júnior tinha um casal muito intimo de amigos, eram eles José de Almeida Sampaio (parente do pintor) e Maria Laura do Amaral Sampaio, que havia sido namorada e noiva do pintor.
Eram tão íntimos, que Almeida Sampaio se hospedava na casa do Almeida Junior até na sua ausência. O casal residia em Rio das Pedras, na fazenda Boa Esperança, próximo de Piracicaba.
Não se sabe ao certo quando o pintor conheceu Maria Laura, jovem muito atraente.
Sampaio, homem simples, de pouca cultura, era bem mais jovem que o pintor, este rico e bem sucedido.
Historiadores arriscam dizer que na década de 1890, Sampaio já estava falido e recebia suporte financeiro de Almeida Junior, que se aproveitando da situação, passou a manter relações intimas com Maria Laura.
(O descanso da modelo 1882)

Em 1899 Sampaio soube que sua esposa fora vista entrando sozinha no atelier de Almeida Júnior, na rua da Glória em São Paulo, onde ele também residia, quando não estava viajando.
Em 10 de novembro de 1899, Almeida Júnior esteve em Piracicaba e conversou com Sampaio, dizendo pra ele que iria para São Pedro e voltaria a Piracicaba no dia 13 de novembro.
Meio desconfiado, Sampaio não acreditou. Achou que havia algo errado.
Como tinha livre acesso à casa do pintor, aproveitou a ausência e foi até São Paulo. Revirando o atelier, teve uma drástica surpresa ao encontrar várias cartas da sua mulher Maria Laura, íntimas, todas com confissões pessoais, endereçadas ao pintor. Descobriu também, através de um bilhete apócrifo, que sua mulher estava se encontrando com o pintor na freguesia João Alfredo, nas imediações de sua fazenda. Os dois eram amantes há bastante tempo.
O Violeiro 1889

A descoberta deixou Sampaio perplexo. Ficou possesso. Não se conformava com tamanha traição, das duas partes, do amigo intimo e da esposa infiel.
Na rua, disse para conhecidos que queria morrer.
Dois dias depois, Sampaio entrou no escritório do ex-presidente da República, o advogado dr. Prudente de Moraes Barros, e mostrou as cartas comprometedoras, pedindo a separação legal.
Mas, antes que qualquer coisa se resolvesse, Sampaio tomou outra decisão. Iria lavar sua honra com sangue. Não poderia suportar viver com o fato de que fora traído por sua esposa e pelo melhor amigo.
Sampaio queria vingança. Queria sangue. O sangue de Almeida Junior. Ele sabia quando e onde o pintor iria chegar.
Na tarde do dia 13 de Novembro de 1899, Sampaio se armou com uma faca afiadíssima e foi esperar a chegada do amigo, na porta do Hotel Central, em Piracicaba.
Pelo fato de que aqueles eram os últimos dias do século, havia uma grande histeria dominando a população, que acreditava que o mundo iria acabar, como sempre acontece nas viradas de século.


(Moça com livro - sem data)

Naquele dia, alguém teria dito ao pintor que o mundo acabaria.
Já eram mais de 14 horas, quando a luxuosa carruagem estacionou na frente do hotel.
Tarde ensolarada. Rua cheia de pessoas circulando por todos os lados.
Maria Laura desceu da carruagem com seus cinco filhos, acompanhada por sua cunhada, Ana Blondina.
Laura estava com 28 anos de idade.
Sampaio observava a cena do outro lado da rua. Ele estava com 37 anos.
Almeida Júnior foi o último a sair da carruagem. Trazia uma cesta em cada mão. Estava com 49 anos.
Sem o menor aviso, Sampaio partiu pra cima do pintor. Empurrou-o com violência contra a parede e disse: “Você não foi a São Pedro! Você foi a João Alfredo!” A faca afiada guardada no colete surgiu em suas mãos.

(Recado difícil 1885)

O acerto de contas havia chegado. Era o momento da vingança.
Para Sampaio era a hora de matar. Para Almeida Júnior era a hora de morrer.
Antes que pudesse reagir, o pintor levou uma facada na clavícula esquerda.
A faca atingiu uma artéria bem próximo do pescoço. O sangue do pintor esguichou.
Cambaleando, o artista tentou reagir, sacando sua faca. Mas não adiantou. Estava fraco demais e perdia muito sangue.
O golpe foipreciso, fulminante, mortal.
“Não, você não pode me matar. Você roubou a minha honra, mas não vai roubar minha vida”, gritou o assassino, enquanto o amigo tombava com o pescoço borrifando sangue.
“Estou morto, mas que homem ingrato!”, disse Almeida Júnior agonizando.
Foram suas últimas palavras. Morreu logo em seguida a caminho da Santa Casa.

Saudade 1889

Após o crime, Sampaio caminhou para o interior do hotel, onde foi preso.
Não ficaria muito tempo na cadeia. Ainda no dia 29 de dezembro de 1899, Sampaio foi absolvido por unanimidade no tribunal. A defesa alegou que a honra do réu havia sido ultrajada. O júri concordou.
Maria Laura rompeu com o marido e foi viver em Indaiatuba, onde possuía familiares. O divorcio saiu em 1902. Onze anos depois, em 1913, ela morreria.
Sampaio, depois de sair livre, liquidou seus negócios e foi viver numa fazenda em Itu. Casou–se com uma italiana, com quem teve um filho, e morreria em 1930.
Almeida Júnior, considerado até hoje pela crítica, o poeta da pintura nacional, está sepultado em um mausoléu da rua 1, quadra 23, no Cemitério da Saudade, em Piracicaba.
Existem inúmeros rumores, que dois dos quadros mais famosos pintados pelo artista, seriam premonitórios. Essas duas obras são os quadros “Saudade” e “Recado difícil”.
No primeiro quadro, Saudade, uma mulher aparece lendo uma carta, ou observando um retrato, com visível saudade. Dizem que o artista teria retratado ali, uma de suas amadas sentindo falta dele, após sua morte.
Na segunda obra, um garoto visivelmente abalado não sabe como dar uma trágica noticia para uma pessoa, que está atrás de uma porta. Segundo alguns, neste quadro, A Notícia Difícil que o garoto precisava dar era a da própria morte do pintor.
(parte dos relatos compilados do blog de Reginaldo Carlota)

O Importuno - Almeida Jr - sem data


Sobre as cartas da amada Maria Laura ao pintor que se achava em Europa...

Já desespera a demora. As recordações, as saudades não poderia dizer em toda a coisa de papel...

As cartas de Maria Laura são assinadas como "bbb". Numa delas, Maria Laura revela todo o seu desespero diante da distância e da ausência do amado. Escreve:
"Está chegando o dia do martyrio para mim, separar-me de vosse, eu fico desesperada com isso, vosse não pode calcular em que estado fico; me vem mesmo desespero, eu podia viver só na tua companhia descançada dessa gente eu que não posso mais suportar."

E outra, reveladora, mas que não mereceu, nem mesmo no processo, maiores interpretações:

"Agora, quando te verei? Vosse marque quando vem para eu te esperar porque a esperança de ter me consola da grande dor da separação. Está com seis anos a tua filhinha, eu sinto ver ella na edade de receber educação que ella não havia de ter tão boa tendo um pae como ella tem e não aproveitar(...)"
E encerrava:"Adeus! Adeus! Já não posso mais, eu quero te ver breve aqui meu Deus! Vou te esperar logo, quero demais te ver. Adeus, abrace e beije a tua eterna e terna bbb. Vai com pingos de lágrimas de saudades."

A carta da morte

A carta que Vicente de Azevedo transcreve foi escrita e enviada por Maria Laura a Almeida Júnior quando ele se encontrava na Europa:


"Meu saudosíssimo O d'alma. Quero aproveitar um dia que tenho para ver se posso fazer-te chegar às mãos nesse mundo tão diferente, as minhas pobres notícias que com o coração desesperado de imensores rancores (sic) vou te dar.Hoje, 34 dias da tua partida, e eu sem a mínima notícia de ti! Me prometeste dar notícias,até hoje, não calculas este triste coração como sente-se desesperado de mil cuidados,mil saudades,nem tenho expressões para te dar, todos os dias,de 6 a 8 dias para cá vou como louca esperar tua carta e nada,por que não escreves?
Peço-te pelo amor de Deus, dê noptícias, é uma tarefa para você, bem sei, mas calculo que é essa a única tranqüilidade e o único desabafo de um coração oprimido, meu
Deus, sem uma notícia tantos dias! Outrotanto não te acontece, talvez, que logo que chegaste recebeu a que ele te escreveu.
Dê notícias como passa de saúde, que é todo o meu interesse, que por ela me sacrifico a todos os sofrimentos,tenho pedido a Deus e estou certa que tens passado bem e
voltarás são. Felismente uma má notícia tenho a te dar dos ídolos, estão fortes e bem dispostos,a Ozinha de nossa alma cada vez mais interessante e ativa, tenho muito dó dela, não passa um dia que não fale em você, que não repita os brinquedos que muitas vezes são ouvidos com chuveiros de lágrimas que não posso contar, sendo uma expressão tão igual que parece que herdou tudo, tudo, do saudoso e querido.... O outro está muito ativo e bonitinho.
Moça lendo em Itu

Meu Deus! Agora que me vejo com quantos milhões de léguas separada, passando pelos cuidados que passo com a falta de notícias, só há de consolarme a visita destes anjinhos, fazem-me uma recordação tão dolorida que não posso conter as lágrimas de saudades a todo o momento, é bom que desabafo-me. Quando vence ainda tanto tempo, meu Deus! Venha logo, ou não posso mais, Deus me recompense com o que tanto aspiro que darei por muito feliz os sofrimentos que tenho.
Ela (NR: a cunhada) foi a I.(NR: Indaiatuba) e eu fiquei sozinha alguns dias, dei-me por feliz não ter ido, porque só desejo a solidão, quero estar só para me recordar sem estorvo, de quem é meu tudo neste mundo, quando durmo sonho e sem poder e sem saber calcular nem ao menos as horas que deve ser lá esta (sic) que passo a pensar em ti...

A amada Maria Laura...


Quero demais poder fazer esta, que só daqui a 20 dias poderá receber, meu Deus,que distância!!! Receberei notícias esta semana? Já desespera a demora. As recordações, as saudades não poderia dizer em toda a coisa de papel - vai somente para desabafar um pouco este teu pobre coração, que sentiu-se tão aliviado ao fazer seguir esta, quando receber ela alguma notícia tua eu ver que você recebeu esta, ponha um risco pequenito com a pena no canto, já eu sei que foi recebida. Tenho sofrido demais, meu Deus! - tudo é triste, tudo é feio, estes dias ao menos vou apesar tranqüila (palavra ilegível) foi ao júri e estou só aqui neste rancho, aonde em todo o canto tem uma recordação. Conte quando vem mesmo, nem gosto de pensar nos dias que faltam,faço contas todos os dias, tenho uma pressa que passem os dias que não calculas. Meu Deus já se foi o papel!!! Não me esqueço nem um dia ao acordar e a noite ao deitar-me da tua recomendação sobre os ídolos, que papel (?) o coração ainda está transbordando de saudade. Mas o que fazer?
Aceite mil abraços e beijos dos teus queridos ídolos e aceite tudo, tudo quanto pode haver de afeto, saudades loucas, tudo enfim da tua eterna 666."

Amo como ama o amor. Não conheço nenhuma outra razão para amar senão amar. Que queres que te diga, além de que te amo, se o que quero dizer-te é que te amo?
Fernando Pessoa


Próxima Página
Página Inicial